quarta-feira, 20 de abril de 2011

Aforismo #1

Haverá um homem tão céptico que duvide do seu próprio cepticismo?


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terça-feira, 12 de abril de 2011

O Auto de Sócrates

Num momento de transe filosófico (sim, eu também tenho disso) redigi esta peça/poema ao estilo de Gil Vicente. Trata-se de um prelúdio do Auto da Barca do Inferno onde surge uma nova personagem: Sócrates, o tipo que andava demasiado ocupado a chatear pessoas nas ruas de Atenas com perguntas chatas tais como «O que é a virtude?», «O que é o Saber?» e «O que é Ser?» para que tivesse tempo de escrever o que quer que fosse e por isso temos de confiar no testemunho dum tal Platão (o homem tinha os ombros largos) e dum Xenofonte (um zé-ninguém que nunca conseguiu ser tão famoso quanto o anterior). Consta que era um pai e marido negligente e vivia da comida que os que o recebiam em casa lhe davam. Irritou uns quantos magistrados atenienses e por isso foi condenado à morte por evenenamento com cicuta (uma planta). As suas últimas palavras foram um pedido para que fosse oferecida uma galinha a Asclépio (o deus da medicina). Apesar de eu me ter comprometido a não publicar poesia neste blogue, creio que esta é uma aceitável excepção.


(O Diabo e o Companheiro avistam um homem velho aproximar-se. O homem vem vestido com uma toga suja, descalço e com uns papeis em branco. Ao chegar à barca do Diabo pousa os papeis no chão. O Diabo imediatamente reconhece o homem e com um gesto ordena ao Companheiro que guarde os papeis. O Companheiro pega nos ditos e coloca-os numa caixa dentro da barca.)

Diabo
Ó Sócrates, já arcadámos teus papeis.
Escolhe agora um dos batéis.

Sócrates
Qual deles? Este aqui da esquerda?

Diabo
Sim, sim! Ires no outro será para nós uma grande perda.

Sócrates
E para onde vai este batel triunfal?
Acaso não irá para o burgo infernal?

Diabo
Ai podes crer que irá. Direitinho para o Tartarus!

Sócrates
Para o reino do Hádes e do terrível Cerebrus?!

Diabo
Falas de forma bela mas não vos preocupais
Que pela viagem e pelo serviço não pagareis mais
Do que aquilo que já devieis ao barqueiro
Quando vos forneceram, na morte, o dinheiro.

Sócrates
Eu vou antes ali ao batel do invisível,
Que vendo este, me parece mais apetecível.

(Sócrates dirige-se ao batel do Anjo.)

Sócrates
Ó da barca! Ó senhor das boas maresias!
Leva-me ao reino do inteligível, ao reino das oussias!
Meus pés, calejados e sofridos da minha idade
Anseiam por palmilhar a planície da verdade.

Anjo
Quem ousa interromper meu divinal petisco?

Sócrates
Sou Sócrates de Atenas, o filho de Sofronisco.
O mais sábio dos homens da humanidade educada
E o mais sábio sou porque não sei nada.

Anjo
Onde está a tua mítica modéstia?

Sócrates
Essa findou-se na hora funéstia:
Foi-me útil enquanto minha vida durou;
Dificilmente lhe darei proveito, agora que morto estou.

Anjo
Não me parece que aqui entre um sofista.

Sócrates
O quê?! Não pode ser! Verifica de novo a lista.

Anjo
A verdade te digo. Aqui não entrarás!
Dirige-te ali a meu irmão. Com ele decerto partirás.

Sócrates
Como pode um sábio da minha sorte
Ser privado do seu divinal transporte?!
Oh que mundo cruel! Oh que mundo vil!
Em que um homem como eu, um homem tão servil…

Anjo
Cessa teu queixume! Pareces uma velha lavadeira!
Em vida viveste sempre de maneira
Pretensiosa e arrogante, por isso, agora,
Seguirás na outra barca. Despacha-te que já é hora!

(Afugentado pelo Anjo, Sócrates dirige-se cabisbaixo à barca do Diabo.)

Diabo
Ah que saudades tinha de ti, meu sabichão!
Como correu a conversa ali com meu irmão?

Sócrates
Foi recusada a minha entrada no paraíso.
Consta que em vida não fiz o que era preciso.

Diabo
Ninguém o fez! Ninguém o faz! Ninguém!
Transportei três epicuristas ainda ontem.
Não sei porque não fecham aquela caravela.
Nunca lá tem passageiros nem clientela!

Sócrates
Chega de dialéctica! Finda teu discurso!
Solta a vela, levanta a âncora. Iniciemos nosso curso.

Diabo
O mar está picado, o vento está de bolina.
Ainda assim partiremos. Larguemos a marina!


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